O merecido descanso
Por Pedro Silva
m cidadão livre de valores. Talvez essa seja a melhor definição para Francisco de Carvalho Félix, ou simplesmente Beto Franzisko, como gosta de ser chamado. O artesão de 65 anos faz parte de uma pequena parcela da população que conseguiu superar a situação de rua. De semblante alegre, mas sempre lembrando das pessoas que vivem nessa realidade, Beto conta a sua história e fala sobre os desafios enfrentados por quem é tão marginalizado e carente de políticas públicas.
Natural de Sobral, a 232 km de Fortaleza, Beto chegou à capital cearense aos 9 anos de idade, sozinho. Vítima de abandono familiar, pegou o trem e fez da entrada da antiga Igreja da Sé a sua primeira morada na cidade. Pelos arredores da construção da atual Catedral Metropolitana, passava o dia jogando futebol com outras crianças que ali habitavam e vivia da ajuda das pessoas que passavam pelo local.
A sua realidade naquelas proximidades foi modificada pouco tempo depois. Levado pelo Juizado de Menores da época, foi alocado em uma instituição de ensino em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Por lá, aprendeu não só a ler e escrever, mas também o ofício que leva para a vida inteira e que até hoje é a sua principal forma de sustento.
“Quando saí pra vida, já saí com essa atividade de artesão. Nunca foi tão valorizado, mas eu sempre fiz essa atividade com muito amor e carinho. Acho legal quando a pessoa adquire o meu trabalho e fale assim ‘gostei, viu?’. Acho isso melhor do que o dinheiro que eu ganho”, relata.
De volta à situação de rua, Beto enfrentou a desproteção e a vulnerabilidade em outros pontos de Fortaleza e até do mundo. Fez de bancos e calçadas a sua morada em bairros como Aldeota, Henrique Jorge, Granja Portugal e Centro. No exterior, vivenciou a situação de rua em países da América do Sul, Europa e na América do Norte. “Fui pros Estados Unidos. Fiquei lá com o meu inglês meio sem vergonha (risos). Lá consegui sobreviver fazendo o meu artesanato. As pessoas gostavam”, conta.
Há pouco mais de três meses, Beto teve acesso ao Benefício de Previdência Continuada (BPC), fruto de sua aposentadoria. Aliado a junção de algumas economias com a venda de seus produtos artesanais, saiu da situação de rua, alugando um pequeno cômodo localizado na Avenida Dom Manuel, no Centro. Segundo ele, a ida ao local é mais para o descanso e para deixar o seu material de trabalho. “É um local que eu tenho aqui que, inclusive, é provisório”, conta.
Franzisko foi contemplado recentemente com uma residência ofertada pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal. Em breve, o artesão estará de mudança para a Parangaba.
A mudança da realidade em que vivia proporcionou ao artesão novas perspectivas. O acesso a moradia deu a possibilidade de Beto conseguir organizar melhor a sua rotina de trabalho, assim como participar com mais frequência dos trabalhos sociais que desenvolve. Além do seu ofício, Franzisko também atua na militância voltada às pessoas em situação de rua. Há 6 anos, ingressou no Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), com o objetivo de lutar pela garantia da cidadania de todos os “companheiros” que estão vivendo essa realidade, atuando na promoção de debates e propostas de políticas públicas que auxiliem aqueles indivíduos.
Entretanto, Beto não acredita que a solução esteja somente na atuação do Estado. Para ele, a pessoa em situação de rua também tem que buscar a emancipação daquela realidade. “Para você sair da rua, primeiro, tem que olhar para dentro de você e compreender que ali não é o seu lugar. Aí você se capacita, consegue desenvolver uma atividade profissional. E a partir do momento que você começa a ter uma arrecadação, você acha o seu lugar”, afirma.
De acordo com dados apresentados em uma pesquisa realizada pela Assembleia Legislativa do Ceará em 2013, 46% das pessoas em situação de rua no estado querem sair dessa vivência.
“Quando você está nas ruas, você não está empoderado como sujeito de direitos. Você perde a sua cidadania. Fica muito dependente. Depende de uma sopa, depende de uma ajuda, depende de alguém que te auxilia”, ressalta o artesão.
Mesmo hoje não estando mais nessa situação, Beto compreende a importância que a rua tem em sua vida. Ele a considera como “um ato de cidadania”, funcionando como uma tribo onde os seus membros convivem e sobrevivem entre si. Além disso, Franzisko comenta que se um dia precisar, voltará para as ruas sem pensar em procurar algum outro local. “Eu pretendo nunca mais voltar para a rua, mas assim, se for necessário voltar, não tem problema nenhum. Eu volto com a mesma tranquilidade e vou continuar lutando para que as pessoas possam sair da rua”.
___________________________________________________________________________
“Eu pretendo nunca mais voltar para a rua, mas assim, se for necessário voltar, não tem problema nenhum.
___________________________________________________________________________
Ao falar de seus sonhos e planos para o futuro, o artesão lamenta não ter conseguido realizar alguns de seus anseios, como cursar Jornalismo e promover uma comunicação voltada para os setores mais marginalizados. Entretanto, sente-se orgulhoso de estar na militância e de ter esperança de que as pessoas em situação de rua possam ter uma vida melhor. “Perceber que essas pessoas podem se reerguer, ser um cidadão e depois ter a sua própria moradia e continuar vivendo normal é um grande sonho. Eu vim dessa situação, já estive em situações difíceis e me reintegrei. Eu acho que as outras pessoas também podem conseguir”, reitera.
Dessa forma, Beto segue a sua rotina. Como um cidadão que não se diz rico, nem pobre; feio e nem bonito; alegre e nem triste, segue a sua caminhada na busca de direitos para todos aqueles que vivem a situação a qual enfrentou por tanto tempo.